Fernando Pessoa sobre Salazar: do benefício da dúvida (1928) até à critica feroz (1933-1935)


“Os manuscritos pessoanos publicados por Teresa Rita Lopes vieram confirmar que, contrariando as propostas de leitura da Mensagem como livro reaccionário (de entre as quais ressalta a de Alfredo Margarido pela qualidade do seu aparato), Pessoa se distanciou de Salazar de maneira inequívoca, tendo-lhe apenas no início da ditadura, em 1928, concedido o benefício da dúvida. A mundividência pessoa estava muito longe da do ditador e não poderia de nenhum modo coadunar-se com a sua política.
[...] Pessoa é frequentemente contraditório, mas raramente defende contrários. [...] Vejamos o mencionado caso de Salazar: para além do benefício de dúvida que Pessoa inicialmente lhe concede, num escrito de 1928*, o poeta nunca defende o ditador** (nem Mussolini ou Hitler, acrescente-se). 
Mais ainda: Pessoa nunca altera a sua atitude negativa relativamente ao catolicismo; nunca afirma que não vale a pena fazer nada por Portugal; nunca afirma que Antero não é um grande poeta [...]."


* [nota do texto]: Pessoa diz nessa altura confiar em Salazar por um motivo primário que ‘é aquele de ter as duas notáveis qualidades que ordinariamente falecem no português: a clareza firme da inteligência, a firmeza clara da vontade’ (Pessoa Inédito, 1993, p. 363).
** [nota do texto] Pouco tempo decorrido, começam as criticas fortes que chegam, já em 1933, a falar do ‘sovietismo direitista da União Nacional’, do Estado Novo como uma ‘teocracia pessoal’, e a escrever: Mais valia publicar um decreto-lei que rezasse assim: art 1.º , A[ntónio] d[e] Oliveira] S[alazar] é Deus. Art. 2.º Fica revogado tudo em contrario e nomeadamente a Bíblia (Pessoa Inédito, 1993, p. 367). Em 1935 chama a Salazar um ‘aldeão letrado’, que criou ‘realmente um Estado Novo, porque este estado de coisas nunca antes se viu (Ibid., p. 376). E explica qual é esse estado de coisas numa carta que esboçou dirigida ao próprio Salazar: ‘Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos que a ordem nas ruas, que as estradas, as pontes e as esquadras tinham que ser compradas por tão alto preço – o da venda a retalho da alma portuguesa’ (Ibid., p. 376).

- ALMEIDA, Onésimo T., “Mensagem – uma revisitação”, in A Arca de Pessoa (org. Steffen Dix e Jerónimo Pizarro), Lisboa, ICS, 2007, p. 207-208.

Na imagem: Fernando Pessoa interpretado por Rui Mário no filme “Poesia de Segunda Categoria”